Por Shirley Barrack* 

Mesmo Cabral, com seu olhar capaz de vislumbrar daqui, o Monte Pascoal lá em Itamaraju, ficaria surpreso com a extensão dos limites da Comarca de Porto Seguro, a cargo de apenas 17 destemidos Oficiais de Justiça, de carne e osso, quarentões, protegidos apenas com a frágil camisa de algodão, responsáveis pelos mandados da Justiça Comum (Cível, Crime, Fazenda Pública, etc) e do Sistema dos Juizados Especiais. 

São 2.287 km2 de município, com seus inúmeros e populosos bairros (só o Baianão tem cerca de 70 mil habitantes) e os distritos de Vera Cruz, Arraial D’ajuda, Vale Verde, Trancoso, Caraívas, Aldeia de Barra Velha, Queimados, Boca da Mata, etc; alguns paradisíacos, mas com muitas estradas sem pavimentação. 

A terra-mãe, a caminho dos 519 anos, ainda não possui placas com a denominação da maior parte dos logradouros, nem registro de muitos deles no satélite para viabilizar a localização por GPS. A rara numeração das casas afronta os conhecimentos mais elementares da matemática, pois os números são repetidos e sem sequência lógica. Alie-se a essas intempéries a característica de cidade turística com a peculiaridade de população flutuante e desconhecida entre si, tornando o trabalho do Oficial desgastante e infrutífero. (Bem que os advogados poderiam fornecer mais dados para a localização das partes e garantir a celeridade processual!) 

Há lugarejos tão longínquos e de acesso tão difícil, que chega um dado momento no cumprimento dos mandados em que é como se a força estatal recuasse (no caso o TJ quando não fornece os meios materiais imprescindíveis para viabilizar a diligência) e dali em diante, na linha de frente, sem nenhuma munição, precisasse nascer o “super oficial”, o herói anônimo que extrapola todos os limites do dever funcional e assume o patrocínio, inclusive financeiro, para que a Justiça possa, enfim, se manifestar (ou estaria Têmis, a deusa da Justiça, representada com uma mordaça, ao invés da venda nos olhos). 

Tome-se de exemplo um dos muitos mandados a serem cumpridos em Barra Velha: O Oficial precisa atravessar de balsa para o arraial, viajar durante 01 hora até Trancoso e percorrer até Caraívas mais 37 km de estrada de chão em severas condições, em seu veículo particular e inadequado para o trecho. Deve deixar o veículo às margens do Rio Caraívas e arcar com a taxa de estacionamento, enquanto atravessa o rio em uma canoa (igualmente tarifada), em razão da Vila não permitir o tráfego de veículos automotores. A partir daí o Oficial tem que pagar 80,00 pela viagem de bugre da associação indígena (única autorizada a trafegar ali) até Barra Velha. São só 6 km, que duram uma eternidade porque não há estrada, mas um autêntico areal. Para o turista fica por 120,00 até Barra Velha e 250,00 até Corumbau (mais 6 km). De lancha sai a 75,00 por pessoa e depende de lotação. 

Em Caraívas, comunidade com apenas 1000 habitantes, localizada dentro da área de proteção ambiental, entre o rio que deu nome ao povoado, o oceano Atlântico e uma reserva indígena de pataxós, mesmo às vésperas das eleições municipais, não se percebe a mínima presença da administração pública, além da existência de um pequeno posto de saúde. O único médico na localidade é o casado com uma índia. A expectativa (não correspondida) dos moradores face à administração municipal de Porto Seguro é somente em relação à construção de estradas. Não havia nenhum militar no posto policial (imagine viver num lugar de difícil acesso sem ao menos a presença policial simbólica!).

A intensa miscigenação, principalmente numa região turística, pode ter causado o enfraquecimento gradativo das tradições indígenas, diluindo a figura do cacique, outrora com papel de destaque como mediador de conflitos, responsável em aplicar as regras da tribo e definir punições. Pois, bem: Com a ausência da polícia militar e com o enfraquecimento do cacique, o único “lampejo” de Justiça a manter o tênue equilíbrio social, ficou a cargo do Oficial de Justiça, com sua presença frequente e, de certa forma, ostensiva. 

Todavia, o conceito do meirinho em nosso meio, muitas vezes é menos digno, sobrepondo-se sempre os adjetivos inspirados nos mandados em que não foi alcançado êxito. Mas é fato: O super oficial existe (embora infelizmente não seja uma regra)! Não importa onde ou quando, ou o obstáculo a ser vencido, pelos caminhos mais insípidos, de balsa, de canoa, de bugre, de havaianas, a decisão do juiz chega ao jurisdicionado, quer queira ele ou não. 

Porque essa é a expectativa da comunidade: que a Justiça se efetive! Que o conflito de interesses deduzido em Juízo tenha condições pra ser elucidado e, para isso, o oficial tem que dar o melhor de si, ainda que não seja o bastante. (E a terra-mãe tem que dar exemplo pro resto do país!) 

Em muitos momentos o super oficial fraqueja, treme e é tomado de assalto por um grande vazio na alma. Laconicamente anseia por fazer algo mais construtivo. Inveja o marceneiro que constrói uma mesa de 8 cadeiras para uma grande família se sentar e fazer a ceia. Cabisbaixo, intima outro jovem usuário de drogas para a audiência preliminar e na diligência seguinte, depara-se com a mãe sofrida que lamenta a morte precoce do filho assassinado ou com um pai, atônito, que padece pela prisão do filho, que se manteve firme na carreira criminosa. 

Esse oficialato não pode, definitivamente, ser encarado como uma mera relação de trabalho (pra isso já existe o carteiro!). Ao cumprir um mandado esse servidor está abrindo ao jurisdicionado, nada menos do que uma oportunidade de defesa, transformando a realidade das partes, fazendo valer o princípio constitucional do contraditório, preservando o estado democrático de direito, garantindo a manutenção da ordem pública e a paz social. Sim, porque de nada adiantaria a decisão do juiz se não saísse do seu gabinete! Tem que sair do mundo jurídico e adentrar no mundo físico, para que possa atingir os sujeitos do processo, senão é letra morta. É o ilustre oficial quem faz esse ritual de passagem; quem procede à alteração material na comunidade, quando efetiva um despejo, uma busca e apreensão, uma condução coercitiva, uma penhora, um alvará de soltura, etc. É a mão abençoada do juiz (ou amaldiçoada, a critério da parte que estiver sendo intimada! Pobre oficial!), fazendo a entrega da prestação jurisdicional. 

Existe uma magnitude tão sutil por trás do trabalho do Oficial de Justiça, que pode ocorrer de ele próprio não se dar conta, perdendo-se pelo caminho na busca de si mesmo e correndo o risco de se tornar um profissional medíocre, privando, desta forma, os tribunais e a comunidade, de uma peça essencial para a segurança jurídica. 

Cabe a cada um de nós assumir o seu papel social, fazendo a sua parte, sem esperar que tudo seja resolvido pela administração pública e colocar a sua força de trabalho, sem medir esforços, em prol do bem coletivo: única possibilidade de solução plausível. 

*Oficiala de Justiça do juizado de Porto Seguro, narra através de texto e fotografias, toda a odisseia que é feita para intimar pessoas que vivem na aldeia indígena mais afastada da sede do município

Fonte: Sindojus/BA

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